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O mundo da Ch@p@

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A.N, 28.10.10

 

Alugar um carro em Israel, como tarde descobri graças ao conselho de uma amiga experiente naquelas bandas, é provalmente a forma mais fácil e cómoda de viajar em Israel. Os preços dos carros, com gps incluído, rondam os 70 dólares e as estradas são facilmente navegáveis. A este propósito recordámos com um sorriso irónica as auto-estradas russas, onde os letreiros, exclusivamente em cirílico, obstaram a caminhos rápidos e directos. Em Israel, contudo, os letreiros encontram-se escritos em hebraico, árabe e inglês, o que torna o próprio gps dispensável na maioria dos percursos.

 

No dia em que decidi visitar Jerusalém, sózinha pela primeira vez na minha vida, troquei o conforto do carro por três autocarros israelitas, pejados de jovens a cumprir o seu dever militar, trabalhadores e estudantes  que nos sucessivos trajectos entre Tel Aviv e Jerusalém me ensinaram como ultrapassar as barreiras de segurança com agilidade e destreza, fazendo uso dos cotovelos e das minhas pequenas, mas esguias, mãos.

 

A este respeito, tenho que alertar que o trajecto entre as duas cidades tarda cerca de uma hora e um quarto, mas convém sempre acrescentar uns 10 minutos devido aos sistemas de controlo de armas.

 

Da estação central de Jerusalém que fica situada numa zona bastante afastada da Cidade Velha, o autocarro número 1 e/ou 2 levam-nos a essa zona histórica, por entre solavancos e eternos semáforos preguiçosos.

 

Para aqueles que aguentam bem o calor, sugere-se a entrada na cidade velha de Israel pela Porta Oeste, nas traseiras do mítico Muro das Lamentações, com vista para o cemitério judeu do Monte das Oliveiras.

 

Aquela porta, porém e de forma enganosa, não nos conduz ao Muro das Lamentações, não obstante os corredores que separam os homens das mulheres como sucede no referido muro, mas sim ao Monte do Templo, local sagrado para todos os credos e que aos não muçulmanos e judeus, mais do um local de culto, permite um momento de pausa, reflexão e silêncio impossíveis de alcançar nas estreitas, caóticas e vigorosas ruas da Cidade Velha.

 

O calor naquele lado da colina não dá tréguas e a porta reserva-se o direito de abrir a horas especificas (o que no dia em causa sucedeu às 12.30), motivo pelo qual garrafas de água e um lenço para a cabeça são companheiros indispensáveis de jornada.

 

Abandonando o Monte do Templo, irremediavelmente perturbados pela eventual possibilidade de um dia a Porta Dourada se abrir para dar passagem ao Messias, podemos mergulhar no bairro árabe, deixar-nos embriagar pelo toque no Muro das Lamentações, seguir à esquerda até à Porta de Jaffa e Cidadela de David ou percorrer as ruelas à direita e procurar a Igreja do Sagrado Sepulcro.

 

Se as intermináveis ruelas lambirinticas podem não deixar impressionados aqueles que já antes conheceram mercados árabes, o mesmo não se poderá dizer da atmosfera tensa, mas simultaneamente espiritual de Jerusalém, do fervor dos crentes, da convivência, nem sempre pacífica, entre os habitantes daquela cidade, de origens e culturas profundamente enraízadas e antagónicas.

 

Percorrer a Via Dolorosa e tomar consciência que o que a Cidade Velha tem para nos oferecer nos dias de hoje se distancia milenarmente da sua arquitectura original, na medida em que sucessivas guerras e ocupações eliminaram rastos e edificios de civilizações anteriores e que a sua parte

parte moderna guarda recordações impróprias para a sua idade e uma parafernália de hábitos e costumes ancestrais, converte a visita a Jerusalém num passeio à história da Humanidade e à essência da alma humana.

 

Ou talvez fossem apenas os meus olhos solitários que enfatizaram imagens que aos olhos dos locais, lamentavelmente, apresentam cores muito diferentes.

 

 

 

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A.N, 27.10.10

Partir para uma viagem sem quaisquer expectativas é o melhor parágrafo inicial para qualquer história de viajantes.

Existem destinos mais apelativos do que outros, bem como destinos que através de um nível médio de cultura geral conseguimos intuir. Existem, porém, destinos conotados de forma tão negativa com a morte, o terrorismo, o desespero e as catástrofes humanitárias que a falsa segurança da sociedade ocidental nos torna relutantes a visitá-los, retraindo a curiosidade que as viagens, naturalmente, alimentam.

 

Para nós, ateus obstinados, Israel era um desses destinos que não nos fazia suspirar.

Por portas e travessas a mensagem foi passando e experiências díspares, mas genericamente positivas fizeram-nos estar atentos a uma eventual oportunidade de visitar aquele país e conhecer de perto a paradoxal terra santa, cujos solos ressequidos absorvem, há milhares de anos, o sangue da humanidade.

 

A oportunidade surgiu finalmente em Outubro, o que segundo o guia de viagens que nos acompanhou foi uma vantagem, sendo essa uma das épocas mais aprazíveis para visitar aquela região do globo.

Sem expectativas, pelo menos do meu lado que pela primeira vez voei para aquele país, fiz uma mala parca em roupa mas rica em guias, dicas de viagem e planos pouco estruturados de viagem.

 

O que se seguiu foi a surpresa total: a Tel Aviv que recordava como um ponto assinalado no mapa dos noticiários da altura da Primeira Guerra do Golfo apresentou-se veraneante, luminosa, calorosa e húmida, fértil em esplanadas, praias e gente saudável que trocou o café pelos sumos de fruta de take away, que se moderniza sem desprezar os antigos, a história e os episódios sangrentos daquela capital.

 

A cidade emana energia pacifica, sob um manto de frágil e ilusória estabilidade.

Não fora pelos helicópteros que a sobrevoam incessantemente, os testes dos alarmes de ataque que arrastam os locais para as ruas para assistir ao pânico dos turistas mais desatentos, os sucessivos controlos de armas e explosivos à entrada de edíficios públicos e as metrelhadoras pousadas, desleixadamente, na mesa dos cafés enquanto o seu proprietário de dezoito anos acende um cigarro, quase que ousariamos pensar estar no Rio de Janeiro que não conheço, mas que imagino como a cidade de praia por excelência.

 

A descoberta partiu de Tel Aviv que apesar de ser significativamente menos avassaladora que Jerusalem, merece uma visita. Pausada, descontraída e atenta, nem que apenas numa perspectiva comparativa da antagónica experiência dos seus territórios circundantes.

 

O final do dia, extenuante e pegajoso dos 35.º graus de temperatura média, culminaram com hummus e pão de pita que nos permitaram recobrar as forças que na mesma tarde, a salinidade do Mar Morto nos tinha roubado.

Mas essa história fica para outras núpcias.

 

 

 

 

 

 

Nem tudo o que luz é ouro

A.N, 27.10.10

O fim do dia chegou.

A tez pálida das radiações do monitor do computador e da luz artificial, realçava as olheiras baças e profundas.

O caminho para casa afigurava-se longo e sinuoso.

A meio do percurso, dois adolescentes passam por mim de bicicleta. Com a energia de final do dia dos púberes que hoje em dia já não recordo, o miúdo louro diz animadamente ao moreno:

 

"Eh pá, eu quando vejo uma menina bonita digo-lhe que ela é bonita. Qual é o mal?Por exemplo (e neste momento aponta para mim) aquela menina é bonita."

 

Pausa.

 

Um olhar mais atento e dois instantes decisivos depois, o louro continua o discurso: "F#$#$#, mas esta menina tem idade para ser minha mãe!".

 

 

Moral da história: manter um ego mediano, aos trinta anos, é uma tarefa hercúlea.

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A.N, 05.10.10

 

 

Deve-se recorrer à nostalgia com cautela, seleccionar pormenorizadamente as memórias que se pretendem recuperar e reviver e deixar sossegadas as imagens menos simpáticas que ousam recordar-nos de um eu que podemos já não querer como nosso.

 

Recordar a adolescência, por exemplo, sem recorrer aos ditames da razão, rapidamente passa de uma operação de maquilhagem e de doces memórias selectivas, para uma verdadeiro processo masoquista.

 

Somos levados a recordar o travo amargo e permanente da insatisfação e das frustrações,  bem como dos pensamentos que povoavam as nossas mentes, convictamente adultas e lamentavelmente atrapadas em corpos de criança.

 

Os quinze anos ainda cheiram a pastilha gorila de mentol, a cigarros mal fumados em casas-de-banho alheias, a constantes batalhas, derradeiros momentos, questões de vida ou morte debatidas em salas perfumadas a CK One e ao som de 4 Non Blonde.

 

Bilhetes de identidade falsos, horários para voltar a casa, semanas sem pisar o risco não fosse o diabo tecê-las e na sexta-feira seguinte não haver discoteca para ninguém. A angústia dos fins-de-semana fora e a ausência forçada nos grandes momentos, nos únicos momentos, nos episódios derradeiros.

 

A impotência numa idade de certezas, a auto-crítica constante, o pavor da repreensão, o desejo de não ser diferente.

 

As ancas que não enchiam condignamente as calças, as mentiras piedosas, as filas de espera impiedosas, onde o traje preto e branco não nos protegia do Inverno nem dos comentários jocosos da porteira que fingia não saber que legalmente não podíamos permanecer naquele recinto.

 

Os desgostos, os medos, as inseguranças, os arrufos, a certeza de que tudo vale a pena e que todas as causas são suficientemente boas para que possamos morrer por elas, o dramatismo, a emoção, a tempestividade, a convicção absoluta que aqueles amores inexperientes e desastrosos seriam os únicos que algum dia conheceríamos e que o mundo estava ao nosso alcance, sem nos exigir nada em troca.

 

Os quinze anos foram o que foram e aquilo que deles retirámos, já ninguém nos pode tirar . Se os devemos ou não celebrar, é dificil afirmar.

Mas benditas as opções que hoje tomamos porque um dia já os vivemos.