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O mundo da Ch@p@

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A.N, 15.02.11

As avalanches de notícias relacionadas com as mortes solitárias e ignoradas de idosos em Portugal , à semelhança de tantas outras esmiúçadas, polidas, raspadas e  esventradas pelos meios de comunicação social, entediam irremediavelmente qualquer telespectador dos noticiários nacionais.

Não digo que o telejornal deva ignorar estes episódios sinistros e lamentáveis da sociedade actual, nem que nós, portugueses, não possamos/devamos retirar ilações destes acontecimentos.

Porém, restringir essas ilações à inoperâncias das forças de segurança pública ou ao universo caótico e despersonalizado dos serviços de Segurança Social parece-me, salvo melhor opinião, limitativo e irrelevante face ao panorama geral.

Notícias tristes de solidão na terceira idade devem-nos, sim, fazer ter vontade de pôr a mão na consciência e analisar as vítimas de abandono de uma perspectiva mais distante e asséptica.

Devem fazer-nos questionar acerca do porquê da sua solidão;suspeitar de um passado menos correcto ou de atitudes menos louváveis.

Considerando, como sempre, casos excepcionais, parece-me que ninguém está sózinho porque não teve opção ou porque uma cabala universal assim o ditou.

Por vezes as vítimas de hoje, foram agressores no passado e quem sabe até se o caminho da solidão não foi, na realidade, uma opção, para quem, a certa altura da vida, a entrega a terceiros se tornou demasiado dolorosa.

Tomar conhecimento de que nos dias de hoje é possível alguém morrer só, num centro urbano e permanecer esquecida durante seis anos, deve-nos fazer repensar a nossa existência enquanto jovens e no inevitável caminho que teremos, inevitavelmente, que percorrer e no exemplo que queremos deixar para aqueles que um dia, não por obrigação ou dever profissional, um dia terão que se ocupar de nós.

As forças públicas têm o dever de prevenir e remediar catástrofes.

Não o dever de as eliminar.

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A.N, 08.02.11

"O tio João tinha-lhe dito que não fosse para Lisboa, que aquela não era terra de boa gente; que era sítio de outros costumes. Agora que o processo se arrastava há mais de três anos e as sucessivas viagens Lamego-Lisboa pesavam nos ossos e na carteira, Carlos arrependia-se de não ter seguido o conselho do tio e ter partido para Lisboa atrás daquele rabo de saias que lhe tinha dado cabo da vida.

Nunca se tinha acostumado a Lisboa. Os ruídos nocturnos constantes, o trânsito, as luzes, a pressa, as sirenes, as discussões da vizinhança que as paredes de pape o deixavam ouvir, tudo contribuía para o seu desassossego, para a sua vontade de largar tudo e voltar para Lamego, para a beira dos seus, para o sítio onde todos se entendiam e viviam confortavelmente sem as mariquices de Lisboa.

Dos tempos passados em Lisboa não guardava boas recordações, com excepção da carinha do pequeno Carlinhos quando nascera , dia esse singular em que também a mãe deste sorrira.

Agora encontravam-se de novo no tribunal, a calcorrear nervosamente os corredores do Tribunal de Família onde alguém, propositadamente, se esquecera de deixar cadeiras, onde crianças e adultos se misturam numa amálgama de dor e ressentimento , na esperança de um dia os poderem curar através dos ditames da lei e de uma decisão judicial.

Carlos não entendia o processo. Não entendia o que lhe diziam, não compreendia as demoras, os requerimentos, a passividade da juíz, a arrogância da procuradora e acima de tudo não compreendia como o advogado lhe pedia paciência, quando os amigos do café lhe tinham dito que não há tribunal nenhum que afaste um filho de um pai e que o José Manuel dos Amiais tinha tido um caso igual e que já há dois anos que o filho vivia com ele.

Carlos não compreendia as leis e as conferências, os recursos e seus efeitos, da mesma forma que não percebia porque uma coisa que era sua, não lhe era imediatamente entregue. "O lugar de um filho é junto do seu pai", repetia-lhe a mãe. "A continuar assim ainda morremos todos na estrada só para apanhar o gaiato", rosnava-lhe o pai.

Ver-lhe negada aquela que considerava ser a justiça natural enfurecia-o e emudecia-o perante a juiz. E mudo saiu do tribunal naquela manhã, não levando para cima o seu Carlinhos que jurava dizer-lhe que nada o deixaria mais feliz do que viver com o seu pai.

Essa mesma felicidade, acreditava piamente Carlos, certamente apagaria da memória do Carlinhos os cinco primeiros anos da sua vida em que o seu papá não quis saber dele."

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A.N, 06.02.11

 

"Todos os dias , antes de adormecer, sentava-se na secretária castanha, herdada da mãe, e escrevia palavras soltas, com o simples propósito de um dia, quando a inspiração a assombrasse e o cansaço lhe permitisse, poder uni-las e com elas compor frases, como a ensinavam na escola, com sujeito, predicado, complemento directo.

 

Na gaveta, cuja chave há muito se perdera (ou teria sido a terceira empregada que tivera que num rasgo de loucura a mandara para o lixo, juntamente com o botão do casaco azul, outrora perdido na secretária a aguardar ser cosido), amontavam-se papeís, guardanapos, folhas rasgadas e blocos de notas com as palavras que em tormenta conseguia anotar diariamente, nesse ritual secreto que insistia em não abdicar.

 

Todos os dias escrevia. E todos os dias se esquecia do que queria fazer com aquelas palavras.

Todos os dias justificava a falta de coragem com a falta de tempo; o medo do fracasso com a ausência de ideias; a preguiça com a falta de originalidade.

 

Um dia a gaveta transbordaria de papéis, sabia. E nesse dia, sabia também, que os não poderia transportar todos consigo.

Até lá, porém, decide - sem o pronunciar, porém- adiar o projecto. Afinal avida é longa e o tempo é muito. E se alguma vez o tempo deixar de sobejar e a coragem insistir em não se fazer notar, poderá sempre dizer que afinal é tarde demais."