Um projecto de vida
Naquela noite tocaram piano a quatro mãos , soltando gargalhadas genuínas, mas despropositadas e ruidosas.
Sentiam-se felizes e esta era mais uma oportunidade para o demonstrarem ao mundo.
Não que sentissem uma necessidade absoluta de partilhar o que estavam a viver.
Afinal, isso já todos sabiam há anos. Provavelmente até antes deles próprios.
Ele reclinou-se sobre o ombro dela e pensou que era incrível continuarem a rir-se juntos.
Naquela noite, à partida igual a inúmeras outras, a alegria era tanta que por mais que tentassem ser discretos, a luminosidade dos seus rostos sorridentes, não lhes permitia passar despercebidos.
Circundados por um universo multicolor, onde abundam vestígios de uma longínqua infância , alimentam-se de sonhos infantis e promessas ingénuas, que outrora julgavam ter rejeitado.
Sentiam que tinham regressado no tempo, ao estado puro das coisas e dos sentimentos, mas com a tranquilidade que o passar dos anos lhes trouxera.
E, contrariamente ao primeiro amor adolescente , agora eram capazes de saboreá-lo em todo o seu esplendor, com gestos lânguidos e serenos a que a maturidade os acostumara.
Tinham passado trinta e cinco anos e o piano permanecia indefectível , sem dar mostras de cansaço ou desafinações.
Ela sorriu ternamente e acariciou-lhe a frente enrugada.
Os olhos dele, não obstante o passar dos anos e as partidas que a vida lhe pregou, permaneciam vivos e perspicazes. Mas mais do que isso, continuavam a olhá-la com a imensa admiração de sempre.
Naquele instante os pequenos rancores foram esquecidos, as mágoas quotidianas deram lugar aos afectos, a um abraço longo de uma imensa gratidão.
Tinham-se um ao outro e só isso bastava.