O dia ainda mal começou e já ela se dirige a Lisboa, depois de deixar o filho na creche, entregue aos cuidados da auxiliar autoritária, com quem discute acerca do incumprimento do horário do lanche.
Entra no IC19 já atrasada e impaciente, no trânsito, pensa na cabra da chefe que certamente a bombardeará com perguntas acerca do estado da contabilidade; pensa no ex-marido que uma vez mais se atrasou no pagamento da pensão de alimentos; no facto de o cabelo precisar urgentemente de novas madeixas e da persistência da D. Cristina em encerrar o cabelereiro às 19 horas, altura em que se encontrará novamente parada no IC19 de regresso a casa, depois de mais uma jornada de desmotivação no emprego.
Estaciona o seu carro comprado a leasing nas traseiras do edificio onde trabalha deixando uma distância considerável do carro que fica imediatamente atrás, pois não vá ele complicar-lhe a saída. Os que vêm depois, azar, tivessem chegado mais cedo e não teriam problemas de falta de espaço para estacionar.
Nisto chega a fresca da jovem que trabalha no edificio contiguo ao seu e que descuidadamente toca no seu carro exausto da travessia do IC19.
Não há danos a registar, mas ela não contém a sua irritação.
Conta das boas à moça que aflita lhe pede desculpa.
Desculpas não chegam. Dá azo à indignação, clama por cuidado, culpa a jovem por todos os toques e maleitas sofridos nas redondezas; diz que atitudes daquelas são impossíveis.
E grita, ai meu Deus como grita. Grita para si, para se despertar do torpor em que vive; para projectar numa estranha a fúria do seu descontentamento e ainda assim encontra algum alívio.
A jovem encolhe os ombros, não podendo negar um certo desconforto. Repete os pedidos de desculpa e remete-se ao sempre sensato bom senso.
Afinal são oito e dez da manhã e aquela senhora já teve que percorrer todo o IC19.