Hora de ponta
Hoje cruzei-me com uma senhora que sem pudor ou piedade, arrancava flores de um jardim público e gritava aos transeuntes infelizes que com ela se cruzavam, fados com letras de abandono, traição e desgosto.
Gritava com todo o fôlego dos seus pulmões, apregoando ao mundo jamais regressar ao homem que com razão abandonara.
Desconfiados, os presenteados com tal espectáculo, encolhiam os ombros à passagem e apelidavam-na de louca.
Sob a melodia que ecoava do ipod (baixinho, porque afinal sempre se estava a cantar o fado), ela não me pareceu louca, mas incrivelmente sã e possuidora de uma ternurenta beleza, pela forma descomplexada e sem melindres com que se expunha ao mundo.
Com a mesma música a pautar-me os movimentos, observei um estrangeiro, desses entre muitos que nos últimos anos vieram colorir Lisboa, que circulava de bicicleta à hora de ponta na Praça de Espanha, descontraído, sorridente e relaxado, imune aos olhares sanguinários de quem ao volante transporta uma jornada de trabalho.
A música retirou a pressa deste cenário quase idílico, com o pôr-do-sol ainda no horizonte, provocando a suspensão dos rasgos mais densos do dia e retirando, a toda a cena, os veios de loucura e desvario que a mesma, em circunstâncias normais, teria.
Afinal, pelo menos para mim, a música suave conseguiu parar a cidade, mas
esta, sem se dar conta, continuou-se a mexer.