Caim
Numa fase tardia da adolescência, pertenci a um grupo de jovens católicos que se reunia, semanalmente, para problematizar, de forma literal, as situações com que se batiam diariamente e os desafios que lhes eram colocados pela actual sociedade laica.
Quando digo de forma literal , significa que invariavel e voluntariamente me encerrava todas as quartas-feiras à noite numa sala onde me exigiam que pusesse a nú os meus pensamentos, opiniões e episódios quotidianos; onde me era ordenado que aprofundasse e problematizasse as minhas escolhas e invariavelmente me levavam a concluir que a salvação terrena passa pela evangelização de terceiros.
Recordo, com um sorriso, o desconforto que antecediam aquelas reuniões e que via espelhado no rosto da minha amiga A. que me solicitava ajuda para inventar problemas e indecisões para que não lhe faltassem trunfos na discussão que se seguia.
Recordo, ainda, o sarcástico comentário do meu pai ateu todas a vezes que saía de casa para ir a essas reuniões: “Coitadinha, é jovem...não pensa!”.
Paradoxalmente, Saramago , cuja obra continuo apenas a conhecer de forma muita incipiente, e a sua mais recente polémica, traz-me à memória a minha antiga proximidade cristã, pois à semelhança do que sucedia naquela altura, a sua aparente necessidade de problematização e a inevitável e redutora rejeição preliminar do catolicismo, conduzem-me a um estado de extremismo, com o qual nenhum ser adulto esclarecido e racional se pode e deve conformar.
À semelhança do que sucedia na facção católica, parece-me que Saramago encara as questões de forma demasiado séria , para delas extrair verdades absolutas e conclusões demolidoras que o parece conduzir a uma espécie de evangelização encapuzada, destinada a convencer os restantes da idiotice abismal que é o catolicismo.
Jamais colocando em causa a inteligência do premiado escritor e esclarecendo que hoje em dia não me posso, por uma questão de coerência, apelidar-me de católica, prefiro, por respeito à obra e à pessoa, acreditar que as palavras proferidas no lançamento de “Caim”, não passam de um desabafo inconsequente e de uma já não inovadora estratégia comercial, capaz de colocar o livro nas mãos de quem o conhece e de quem nem por isso.
Por outro lado, uma brilhante amiga comentava no outro dia que no seu entender José Saramago não passava de um grande sádico que com a sua escrita controversa e imaginação violenta, proporciona verdadeiros momentos de sofrimento aos seus leitores, dificultando-lhes uma tarefa que é suposta ser prazeirosa: ler. Não sei se concordo com a minha amiga, mas a julgar pela sua persistência nos temas católicos e considerando a sua aversão por aquela religião, não há dúvida que o masoquismo só pode ser apreciado pelo Nobel português.